Jean Piaget (1896-1980), um dos pensadores mais influentes no desenvolvimento da pedagogia no século XX, afirmava que as crianças poderiam ser consideradas “pequenos cientistas”. Talvez por sua própria formação e atuação bastante variadas (ao longo de sua carreira, ele deu contribuições que partiram da computação, passando pela biologia, filosofia e, é claro, pela pedagogia e educação), Piaget entendia que uma atração pelo novo e pelo diferente é pré-requisito para a construção do conhecimento.
Assim, do mesmo modo que o cientista investiga a realidade formatando, realizando e monitorando experimentos a partir de uma inquietação inicial (em termos de ciência, o que se chama de hipótese), também a criança faz sentido do mundo a partir de uma “faísca” inicial, muito parecida. É essa característica primordial que o cientista e a criança têm em comum: a curiosidade.
Um certo ímpeto para desbravar o desconhecido sempre esteve por trás do entendimento do que é a curiosidade (afinal, ela já foi até mesmo descrita por cientistas como a alegria da descoberta1). John Dewey (1859-1952), filósofo e reformador educacional, em seu livro “Como pensamos”, de 1979, afirma que a capacidade de aprendizado está precisamente no exercício da habilidade de “virar as coisas do avesso”. A curiosidade não somente seria um dos componentes desse ímpeto de descoberta, que sempre é deliberado, como também consistiria na base do já citado estágio dos “porquês” das crianças. Uma fase que, segundo ele, é nada menos do que “a fundação para o pensamento crítico” dos pequenos.

A curiosidade, portanto, gira em torno desse desejo por descobrir e forma a base do modo pelo qual avaliamos o mundo como adultos. Adultos curiosos são justamente aqueles que conseguiram manter esse “deslumbramento infantil” de olhar um mundo repleto de mistérios e fascínios, intacto apesar das pressões sociais. E tudo aponta que esses adultos possam ser mais bem-sucedidos que os que, quando crianças, não tiveram seu potencial curioso encorajado e plenamente desenvolvido. Um estudo, intitulado “Early Childhood Curiosity and Kindergarten Reading and Math Academic Achievement“ (“Curiosidade Infantil Precoce e Leitura Pré-Escolar e Realizações Acadêmicas em Matemática”, em tradução livre) publicado na revista Pediatric Research 2, sugere que quanto mais curiosa é uma criança, maior é a probabilidade de ela ter um desempenho melhor na escola.

Segundo uma pesquisa intitulada “Curiosity and Interest: The Benefits of Thriving on Novelty and Challenge“ 3 (“Curiosidade e Interesse: Os Benefícios de Prosperar na Novidade e Desafio”, em tradução livre), ser curioso pressupõe características como abertura a novas experiências, desejo pela novidade e vontade de abraçar o inesperado, sem receios. Em última análise, portanto, podemos ver a curiosidade como um estado de enxergar o mundo que significa estar confortável com a incerteza.
“ A curiosidade traz o risco da aventura, questionando, e, às vezes, até descobrindo, que suas próprias respostas estão erradas.”
Amós Oz, escritor israelense
Mas como pais e professores podem inspirar esses estados de inquietude e segurança com o incerto nas crianças? A verdade é que a curiosidade é um dos pressupostos mais essenciais à educação. Afinal ela já era descrita pelo filósofo romano Cícero, em 79 d.C. (há quase 2000 anos atrás!) como uma “paixão por aprender” 4. Ou seja: o entendimento de que aprender anda lado a lado com a curiosidade já não vem de hoje.
E a ciência apoia essa constatação. A curiosidade estaria entre as quatro características essenciais para possibilitar um melhor aprendizado2.
A curiosidade é um dos 4 fatores para um melhor aprendizado
Curiosidade | capacidade para a invenção e imaginação |
Autocontrole | persistência e atentividade a tarefas |
Comportamento pró-social | habilidade de formar e sustentar relações sociais |
Regulação emocional | capacidade de gerenciar sentimentos e comportamento |
A mesma pesquisa ainda concluiu que a “motivação para aprender novas coisas” seria precisamente o aspecto da curiosidade que teria uma associação mais forte com a realização acadêmica. Segundo a amplamente aceita Teoria da autodeterminação (Self-Determination Theory), as crianças necessitariam de três ”nutrientes psicológicos” (como descrito pelo escritor norte-americano Nir Eyal 5 ) para desenvolverem um sentimento de motivação para a realização de suas atividades – em especial o aprendizado: (1) um sentimento de competência, (2) um sentimento de autonomia e (3) um sentimento de pertencimento. A chave para trabalhar a curiosidade das crianças passaria, portanto, pelo entendimento de que a motivação é multidimensional e depende do alinhamento desses vários elementos.
Mais precisamente, é possível pensar que entram em jogo tanto os traços da própria criança (genéticos ou de criação) como o contexto em que ela se encontra. Por isso, por mais predisposta que a criança esteja a ter traços de curiosidade, ela não vigora sem as condições propícias no seu ambiente3. A bibliografia científica é vasta na constatação da importância desse contexto, adequado ao surgimento e fortalecimento da curiosidade. Um estudo 6 constatou que a curiosidade depende da realização de atividades que estejam relacionadas aos seus interesses específicos. Já outra pesquisa 7 constatou a importância de atividades que sejam significativas em um nível pessoal para o fomento da curiosidade. E assim é com outra vasta parte do conhecimento acumulado sobre o tema – como é o caso de outros estudos já citados anteriormente neste texto 1 2 3 4.
Pais e professores comprometidos com o fomento da curiosidade em seus filhos e alunos devem, portanto, ajudar a criança a identificar qual o significado pessoal de cada atividade que ela realiza. Incentivar sentimentos como autonomia,competência e conectividade pode ser a chave para isso 6.

Ao longo deste texto vimos que a curiosidade é um dos pré-requisitos para uma inquietação que, por sua vez, leva à busca por explorar e entender o mundo à nossa volta. Também vimos que, junto com outros fatores, estar curioso (em oposição a ser curioso) é a base para pensar de maneira crítica e, precisamente, uma das competências-chave a serem desenvolvidas e fomentadas nas crianças durante os anos iniciais.
Refletindo sobre nosso contexto atual, percebe-se que a tecnologia de comunicação mudou o mundo drasticamente. E, junto com o modo como nos comunicamos, alimentamos e deslocamos, o jeito com que aprendemos também está sendo alterado. Penso que o papel do professor como convencionalmente conhecemos mudou: aprender deixou de ser um caminho de mão única – com o instrutor como único transmissor do conhecimento. Agora, requer-se que o aluno seja mais agente em seu próprio aprendizado, tendo o professor como mediador.
“Educação não é uma questão de falar e ouvir, mas um processo ativo e construtivo.”
John Dewey, filósofo e reformador educacional
Isso significa que a construção do conhecimento e do aprendizado se desloca cada vez mais de currículos sugeridos ou impostos por instituições para indivíduos movidos por curiosidade.Nesse novo cenário, a educação deve ser voltada ao estímulo de estados de abertura e reflexão, facilitando modos de aprendizado que instiguem a descoberta e o desenvolvimento de visões pessoais para os conteúdos e assuntos trabalhados. Através desses dois pontos, poderemos capacitar nossas crianças para se tornarem adultos ativos e engajados no desenvolvimento de soluções novas para um mundo instigante e complexo, que já não aceita as mesmas ideias de sempre.
E então? Curioso(a) para ver essa nova realidade?
Guilherme Parolin
Equipe Imagine-me
Referências citadas no texto:
- LITMAN, Jordan A. Interest and deprivation factors of epistemic curiosity. Elsevier, 2008.
- SHAH, Prachi E. et al. Early Childhood Curiosity and Kindergarten Reading and Math Academic Achievement. Pediatric Research, 2018.
- KASHDAN, Todd B.; SILVIA, Paul J. Curiosity and Interest: The Benefits of Thriving on Novelty and Challenge. Oxford University Press, 2009.
- CICERO, Marcus T. Cicero: De Finibus Bonorum Et Malorum. Forgotten Books, 2018.
- EYAL, Nir. Kids today are lacking these psychological nutrients. Big Think, 2020.
- KASHDAN, Todd B.;FINCHAM, Frank D. Facilitating Curiosity: A Social and Self-Regulatory Perspective for Scientifically Based Interventions. Positive psychology in practice, 2004.
- BLACK, Aaron E.; DECI, Edward L. The Effects of Instructors’ Autonomy Support and Students’ Autonomous Motivation on Learning Organic Chemistry: A Self-Determination Theory Perspective. John Wiley & Sons, 2000.
* Este artigo do Imagine-me foi revisado por Julio Cunha Neto, do Português de Boa.